quarta-feira, 22 de junho de 2011

Ainda

Passei um tempo recolhendo gravetos, à procura dos mais secos e inflamáveis para montar uma fogueira e aquecer aquela tarde fria. A busca entre os arbustos parecia-me uma forma de também me embrenhar em pensamentos dispersos, escondidos, alguns ressequidos - aqueles que insistem em povoar nossa mente. Meu olhar rodopiava à meia distância enquanto caminhava a esmo, indo e voltando, recolhendo pequenos galhos secos. De repente a imagem dela vinha à cabeça, uma palavra, um sorriso, um certo ajeitar de cabelos. Movimentos tão suaves que quase simulavam um slow motion, quando o tempo parece respirar segundos para só então seguir adiante. Minha mão já expandia dedos para segurar os gravetos e o pensamento continuava a recolher detalhes dela. O marfim entalhado em dentes, emoldurado por lábios de um surpreendente cor-de-rosa, que consomem a atenção de qualquer mortal com um mínimo de senso estético e amor à arte. O frio afiava um cortante zunido e em um instante despertou-me das divagações. Escolhi mais alguns gravetos e voltei o olhar para o céu de matizes cinzentos. Novamente senti o dia gelado, esquecido pelo sol. Ainda guardo esperanças. Não sei de quê exatamente. Mas me apego ao "ainda", palavra que pode parecer inexpressiva e incompleta à primeira vista, mas que me ajuda a esperar por alguma coisa... Talvez por aquela mesma doce sensação de um abraço que dispensa uma fogueira para aquecer a alma.

Jimmy Machado

segunda-feira, 20 de junho de 2011

Paixões em família

Quando ela veio ao mundo, não sabia que seria minha sobrinha.

Sou apaixonada por ela desde o primeiro instante, do primeiro olhar brilhante, da primeira gargalhada, do primeiro choro, do primeiro “agum” – que queria dizer “água” – e do primeiro “moti?” – que queria dizer “vamos?”. Lembro-me até hoje de como o corpinho dela se encaixava direitinho no meu colo... Ali ela dormia e eu descansava do mundo.

Com dois anos, ela frequentava minha casa como se fosse da família. Cresceu compartilhando domingos conosco. Pimentinha ardida, teimosa, arteira que só. Férias sem dormir uns três dias em casa não eram férias de verdade. Até hoje não são...

Em uma dessas férias, quando eu tinha quatorze, ela três, sua mãe me convidou para ir a Americana, cidade das duas avós, fazer companhia. Lá, em um almoço na casa da avó paterna, vi pela primeira vez o homem com quem passarei a dividir o mesmo teto daqui alguns meses. Seu tio. Naquele dia nem olhei direito para ele... Um misto de timidez e distração.

Agora, conto as horas para vê-la, com dez anos completos, entrando na igreja. Minha dama de honra. Minha paixão coroando minha outra paixão.

Olho para ela e me vejo. Percebo nos seus olhinhos admirados que ela sente a mesma coisa quando me olha. Ela não é sangue do meu sangue, para explicar tamanha identificação... Mas é maravilhoso saber que se um dia eu tiver herdeiros, serão sangue do sangue dela.

Isabella

Lanche da tarde

Era uma tarde de outono. Eu fazia pequenas compras em um hipermercado quando decidi sentar-me em uma das dezenas de mesas da praça de alimentação. À minha frente, chega um casal de senhores lá pela faixa dos 70 anos. Depois de pedir dois pastéis e algo para beber, acomodam-se, ajeitando-se entre algumas sacolas de compras. O pedido chega à mesa. Para acompanhar, cerveja. E eu fico ali a contemplá-los em sua simplicidade. Calma e amorosamente, o senhor com casaco de lã verde compartilha aquele momento tão singelo com a esposa, de cabelos grisalhos levemente penteados para trás.  Os dois trocam alguns olhares e palavras. A cada bocada, a massa esfarela por toda a roupa do marido, além de se esparramar pela mesa e pelo chão. A senhora, com doçura, não interfere. Permite-lhe. O pastel acaba, o copo aos poucos fica vazio. Antes de sairem, ela o ajuda a retirar os farelos de sua "travessura" de fim de tarde. Os dois levantam-se. Ele oferece apoio à amada e os dois saem caminhando, aos passos de quem tem nos braços um amor construído a cada dia, durante anos e anos, a cada parada para um pastel.

Um casal que age com carinho e generosidade nas situações
corriqueiras é invencível nas grandes batalhas.

A lembrança desta cena ficou em minha memória por um bom tempo, talvez uns dois anos. Passados alguns outonos, ainda me traz bons sentimentos.

O amor verdadeiro pouco tem a ver com romances cinematográficos, de novela ou livros. Pode até encontrar neles alguns fragmentos de sua manifestação. Mas não está ali, e sim em cada dia, cada gesto. Seus tijolinhos são assentados com dedicação, respeito e cumplicidade, que devem estar presentes em cada momento, seja ele uma grande batalha ou um almoço de domingo. E esse talvez seja o maior desafio. O almoço de domingo. A nota vermelha do filho. A noite exausta de sexta-feira. Fazer de cada dia uma nova oportunidade para que o amor permaneça e torne-se ainda mais forte. Encontrar nos conflitos mais nebulosos ou situações do cotidiano o brilho e acalanto do sentimento mais puro.  Saber que o amor se faz, sente e eterniza em conjunto, resignando-se de qualquer egoísmo e orgulho.

Eu não sei se este casal enfrenta todas as situações com tal companheirismo, nem há quanto tempo estão juntos, para onde vão, o que sentem. Mas sei que este momento deve ser multiplicado, e acho que eles devem estar fazendo isso agora...



Miriam Bonora